O
coração do Aleixo
Sexta
feira, dia 16 de Dezembro de 2011
Demolição
da Torre 5
A manhã está muito triste.
O circo amanheceu chuvoso.
O vento vai pregando algumas partidas.
Espera-se que à hora do almoço a temperatura melhore.
Venho aqui - momento
raro - deixar algumas palavras sobre o assunto do dia, no Porto.
A implosão da Torre 5
do Bairro do Aleixo.
O circo tem chegado
aos poucos ao bairro, desde que se anunciou a demolição, e esta semana, montou
a tenda, em toda a sua pujança. Entretidos com as reportagens, os diretos e as
declarações dos moradores, mais ou menos azedas, anda o povo e as cabeças
pensantes dos interessados.
Sobre isto, na minha
cabeça existem algumas questões que ainda ninguém pode responder e que me
parecem, até, passíveis de serem sem resposta.
No início dos anos 90
dei aulas de ballet a uma turma do 1º ano da Escola Primária do Aleixo. Escola
esta, que, entretanto, foi demolida, sem metade do circo que envolve deitar
abaixo uma torre de tantos pisos.
Nesses anos, sendo
aquele bairro o supermercado predileto para comprar drogas, em toda a cidade,
investir na escola primária e nas crianças pareceu-me uma atividade prioritária
e, portanto, ofereci-me para trabalhar, no espaço da escola, com a Associação
de Apoio à Criança em Risco (APACRI). Tínhamos intenções diretas e fáceis de
explicar.
Quando mais tempo as
crianças permanecessem na escola, por sua livre vontade, mais protegidas
estavam das vergonhas que até ali chegavam, de carro, táxi ou a pé, vindas de
fora, e muitas vezes de dentro, das famílias disfuncionais e destruídas que,
sem esperança, continuavam a enterrar em cadeias e buracos os seus últimos bens
– a honra, a dignidade e a humanidade.
Posso dizer que
naquele ano ouvi de perto algumas das histórias mais macabras da minha vida.
Mas também posso e devo dizer que foram momentos inesquecíveis, de uma ternura
e ligação inéditos, que nunca mais vivi de igual forma.
Nessa altura eu era a
jornalista do Público que dava aulas de ballet.Chegava ao bairro de mota, ou de
carro, que podia deixar de porta aberta, estacionado frente à escola, sem nunca
ter tido um único problema ou chatice. A professora, como me chamavam, era bem
vinda e cuidada. Mesmo nas mentes mais perdidas, todos sabiam que o objetivo de
proteger as crianças era comum e o respeito funcionava inabalável.
No bairro existiam
muitos farrapos, mas a humanidade sempre me rodeou e o afeto notava-se
presente, mesmo à distância.
Sem me demorar na
descrição desse trabalho doce e difícil – dar aulas de dança a crianças de 6
anos que não conseguiam chegar com as mãos aos joelhos – importa que regresse de
imediato à manhã chuvosa de hoje e àquilo que me preocupa.
Não vos conto se sou
contra ou a favor da demolição do Aleixo. Tanto especialista já falou sobre
isso!
Pessoalmente fico um
pouco triste de ver desaparecer aos poucos um lugar mau que tinha também muito
de bom. Não como um aluno mal comportado que chega ao final do ano com boas
notas, progredindo e mostrando o seu real valor, mas como um aluno mal
comportado que em ninguém confia e a quem ninguém dá chance.
O que me preocupa é o
porquê da demolição, hoje, desta Torre 5 – passarão a ser apenas 4 e até
quando!?
Quarta-feira passei na
marginal à noite. Todas as torres do Aleixo tinham as janelas iluminadas. As famílias,
os moradores, os habitantes estavam afinal ali. Eu estava convencida que a
implodir, o bairro estaria desocupado.
Hoje, às 7h00 ficou.
Como dizia uma residente ontem, algures, saiu para a rua e para o frio com os
filhos – a escola começa às 9h00 – para ver ao longe o circo. O deburre empoeirado
e barulhento da torre que sempre viu, desde que chegou ao bairro, com 11 anos,
vinda da derrocada da Ribeira, todas as manhãs.
Porque se vai demolir
uma torre agora? Porque não transferiram definitivamente todos os moradores
primeiro? Porque não esperaram para montar bem o circo e taparam o disparatado
acontecimento dos olhos daqueles que por ali nasceram, viveram ou pretendiam
morrer? Porque não há respeito. Porque não há humanidade? Porque não se pensa
nestas coisas? Serei apenas eu?
Se fosse na minha rua,
no prédio em frente, de uma lugar que aprendi a amar, custar-me-ia uma febra de
um braço ver cair aquele pedaço da minha existência.
Mesmo que não pudesse
perder o momento. Nem que fosse para ver com os meus próprios olhos e tentar
acreditar.
Faça-se o que tiver
que ser feito, mas faça-se bem feito. À séria. Dando prioridade à humanidade
naquilo que mais a caracteriza. Os seus sentimentos e emoções.
Continuamos a pensar
em moedas e a esquecer corações. Lamento. Ninguém, do circo da comunicação e
afins, me explicou ainda porquê deitar a baixo apenas uma torre e neste exato
momento.
Mais logo, ao final do dia, empoeirado e meio desfeito,
como um lego abandonado no tapete da sala de jantar por uma criança atarefada,
as famílias das 4 torres e os dealers e os compradores regressarão ao bairro.
Alguns como sempre.
Outros sem algumas febras da sua alma. Mesmo que me digam a resposta a esta
questão, nunca a poderei entender. Moro num lugar estranho e difícil. Não
moramos todos?
São 11:25. Daqui a
pouco, aqui onde me encontro, esperarei ouvir a sirene que anuncia a execução
da sentença da Torre 5.
No arranque do novo
ano, vou procurar um rolo fotográfico perdido em casa que tenho com os mais de
30 meninas e meninos com quem vivi durante aqueles meses letivos.
Na minha última aula,
fotografei as crianças uma a uma. Contra a parede branca da escola. Estava uma
manhã de sol e estávamos felizes. Partilhando sorrisos e acreditando que apenas
um, mas um só já bastante, se poderia salvar de um destino triste. A Torre 5
chegou hoje ao fim.